Como os movimentos sociais eram interpretados na perspectiva marxista

1Porque tratar de “Marxismo e geografia econômica na obra de David Harvey”? David Harvey nasceu em 1933. Ele desenvolveu um interesse precoce pela Nova Geografia convicto de que a ciência tem de ser construída sobre uma base teórica e que ela pode explicar processos, mas não essências. Analisar o seu percurso intelectual é importante para esclarecer a natureza da teoria econômica, a diversidade da geografia econômica e sua capacidade para responder questões da sociedade contemporânea.

As etapas da carreira e da obra de David HarveyTrês (ou quatro) períodos

2David Harvey tem publicado bastante. Não tive o tempo nem paciência de ler a totalidade de sua obra. Descobri-la realmente em 1969, quando ele publicou Explanation in Geography (1969). Estive em Québec quando ele assumiu uma orientação marxista: Social Justice and the City (1973) [A Justiça Social e a Cidade, 1980] foi o grande tema da conversa com os colegas canadenses.

3Tive a oportunidade de encontrá-lo no ano 1975-1976, quando permanecia em Paris durante um ano sabático. Sabia que ele trabalhava sobre uma interpretação espacial do marxismo, num momento em que sublinhei a ausência de dimensão espacial no Capital (Claval, 1978). Consequentemente, li com grande curiosidade The Limits to Capital (1982). A sua interpretação da evolução urbana de Paris me fascinou em Consciousness and the Urban Experience (1985).

4Descobri o pós-modernismo no livro de Lyotard (1979) e no artigo de Cedric Jameson (1984). Foi um tempo de crise para a teoria marxista ortodoxa: crise ligada à influência de Henri Lefebvre e do pós-modernismo, dum lado; crise resultando das dificuldades, depois do falecimento, dos regimes socialistas da Europa do Leste, do outro. The Condition of Postmodernity (1989) [Condição Pós-Moderna: Uma pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural, 1992] pareceu-me um livro muito importante para entender as novas orientações da sociedade.

5O meu interesse na obra de David Harvey tornou-se menos permanente nos anos noventa e no começo dos anos 2000. Li com atraso seus livros Justice, Nature and the Geography of Difference (1996) e Spaces of Hope (2000) [Espaços de Esperança, 2004].

6Fiquei fascinado por The New Imperialism (2003) [O Novo Imperialismo, 2004]: é um livro muito claro, escrito para um público amplo. Apresenta uma nova interpretação do capitalismo moderno.

7O livro dirigido por Noel Crabtree and Derek Gregory – David Harvey. A Critical Reader (2006) – oferece uma síntese sobre as diversas fases da evolução intelectual de Harvey e, mais especialmente, das suas publicações dos anos 1990 e do começo dos anos 2000.

8Os colaboradores do livro de Crabtree, e mais especialmente Derek Gregory, concordam sobre a divisão da sua obra em três grandes períodos:

  • A primeira vai até 1969 e a publicação de Explanation in Geography, quando Harvey acreditava no neo-positivismo lógico; seu pensamento repousava sobre a economia liberal.

  • A segunda fase cobre o período entre o começo dos anos setenta e o meio dos anos oitenta. Ela se caracteriza pela espacialização do marxismo, ilustrada por The Limits to Capital. As idéias de Harvey encontram um sucesso considerável até a divulgação do pós-modernismo nas universidades norte-americanas.

  • A terceira fase começa com a publicação de Condition of Postmodernity. A interpretação marxista da evolução contemporânea é criticada pelo pós-modernistas, pelas feministas e pelos especialistas da desconstrução. Harvey refuta estas teses, mas para atingir este resultado, ele tem de modificar suas interpretações. A sua posição torna-se defensiva.

  • Uma última fase começou em 2003. Em poucos anos, Harvey publica textos de síntese onde ele mostra uma nova liberdade na sua interpretação do marxismo: The New Imperialism (2003), onde expõe sua nova teoria do capitalismo de desapropriação, e Spaces of Global Capitalism (2006), onde resume, no capítulo "Notes for a theory of geographical unequal development", a sua concepção de geografia econômica 1.

9David Harvey torna-se um dos grandes teóricos dos altermondialistes. A crise dos anos 2008 deu aos seus últimos livros uma dimensão profética. As críticas contra as teses de Harvey perdem a credibilidade graças à crise financeira do liberalismo econômico. Daí um novo período de sucesso para as idéias de Harvey – sobretudo a sua crítica do capitalismo por desapropriação.

10A interpretação da obra de Harvey não pode ser entendida sem levar em consideração sua sensibilidade aos problemas sociais: ao mesmo tempo em que ele possui alguns princípios permanentes, possui também uma reatividade muito forte às reações dos intelectuais de esquerda.

Princípios e temas dominantes

11Derek Gregory (2006) sublinha a presença de alguns temas permanentes nos trabalhos de David Harvey, bem como de outros que só se impõem no começo dos anos setenta.

12A idéia mais constante na Geografia de David Harvey situa-se no papel central que atribui à teoria: não existem resultados científicos sem uma base teórica. A evidência empírica nunca é suficiente para convencê-lo do valor de um resultado, que precisa de uma explicação racional — o que significa que os processos envolvidos no fenômeno têm de estar analisados. Para David Harvey, depois de 1970, essa teoria tornou-se a marxista.

13O segundo traço permanente desde os anos sessenta é a ambição de um programa de pesquisa que busca esclarecer a dinâmica do capital – motor essencial da evolução do mundo contemporâneo. Mesmo quando David Harvey trabalha sobre um problema local, ou regional, como Paris no século XIX, ele tem como alvo entender a realidade global.

14O terceiro caráter permanente desde os anos sessenta é uma concepção de espaço que diferencia o espaço absoluto ou cartesiano, o espaço relativo (que incorpora a ideia de Einstein sobre a equivalência profunda do espaço e do tempo) e o espaço relacional (uma categoria sem nenhuma métrica que tem a sua origem nas mônadas de Leibniz e nota todas as relações que cada um pode desenvolver). Tal concepção jogou um papel importante nos anos 1980, quando David Harvey introduziu a ideia da compressão espaço-tempo na sociedade moderna. Mais tarde, ele articula-a às categorias espaciais de Henri Lefebvre (espaço material, espaço de representação, espaço de projeção) para criar uma interpretação marxista do espaço (Harvey, 2006c).

15O quarto caráter permanente na obra de David Harvey depois de 1970 é a vontade de construir uma ciência útil à classe operária, aos pobres, aos excluídos, aos marginais. Sua geografia não tem a vocação de oferecer receitas para fortalecer a posição dos grupos dominantes. Sua finalidade é facilitar a unificação dos grupos explorados pelas classes ricas e criar uma força revolucionária capaz de opor-se aos interesses dos poderosos, impondo uma outra organização das relações sociais e econômicas.

A diversidade das geografias econômicas

16Para mensurar a contribuição de David Harvey à edificação da geografia econômica moderna, é importante analisar as diversas perspectivas que coexistem ou se opõem neste domínio. Vamos apresentá-las segundo a ordem em que influenciaram a construção da geografia econômica.

1- A geografia econômica clássica

17A geografia econômica desenvolveu-se na metade do século XIX, quando o crescimento do comércio internacional acelerou a especialização de cada região na produção em que ela tinha a vantagem relativa mais forte. Essa disciplina, já presente em algumas publicações de Carl Ritter (1852/1974), foi codificada nos anos 1860 pelo geógrafo alemão Karl Andrée (1860-1874). Ela era essencialmente descritiva, oferecendo descrições das áreas de produção e dos fluxos de bens na cena mundial. Ela não falava das atividades econômicas de autoprodução e autoconsumo: só se interessava pela fração da produção que já estava comercializada.

18Este tipo de geografia econômica desenvolveu-se rapidamente no Reino Unido e na França nos anos 1880 e 1890 (Chisholm, 1888; Dubois e Kergomard, 1897). Entre as guerras mundiais, ela conheceu um grande sucesso nos Estados Unidos onde, em várias ocasiões, era ensinada por geólogos graças à sua competência na estimativa das reservas de carvão, petróleo ou minerais metálicos.

19Tal geografia econômica estabelecia relações com a Geologia e com a Agronomia, mas ignorava completamente a economia — e a economia espacial. Ela prevaleceu até os anos 1950. A sua maior contribuição ao desenvolvimento da geografia econômica foi a análise das condições climáticas, pedológicas ou geológicas da distribuição dos recursos naturais, a consideração do papel das técnicas nos processos de produção agrícola ou industrial, a cartografia dos fluxos de bens e a ênfase sobre o papel dos mercados (Maurette, 1921).

2- A geografia econômica de inspiração econômica: a influência da economia espacial

20O segundo tipo de geografia econômica derivou da economia espacial. Este gênero de abordagem desenvolveu-se essencialmente nos anos cinquenta e sessenta do século vinte, mas teve pioneiros desde a metade do século XIX: economistas, como Von Thünen, sociólogos como Alfred Weber, geógrafos como Walter Christaller ou engenheiros como Launhardt.

21A fundação teórica da economia espacial repousa sobre a análise econômica. A sociedade econômica é feita de agentes perfeitamente racionais. Eles desejam maximizar o seu proveito ou a sua renda, se são produtores, e a sua utilidade, se são consumidores. Como suas decisões são racionais, não é preciso estudá-las empiricamente. O teórico da economia possui a capacidade de explicá-las através da análise das possibilidades de proveito, de renda ou de utilidade oferecidas numa situação dada. As mais importantes variáveis para o geógrafo econômico são as dotações em fator terra e em fator trabalho, bem como o custo da distância para a transferência de bens, pessoas e informações.

22O problema é explicar a localização das atividades econômicas a partir da análise das escolhas feitas pelos produtores para maximizar seus proveitos e, por sua vez, os consumidores para maximizar suas utilidades. No caso em que produtores e consumidores competem pelo uso do mesmo solo — áreas urbanas, por exemplo —, a solução da questão seria mais difícil. William Alonso imaginou uma solução elegante nos anos sessenta graças ao recurso às curvas de lances [enchères].

23A geografia econômica desenvolvida nos anos cinquenta e sessenta não tratava somente das escolhas individuais. Ela explorava as consequências coletivas das escolhas de cada um, no caso dos mecanismos de mercado (microeconomia) e no caso dos mecanismos da circulação da renda, do proveito, do investimento e da poupança (macroeconomia). As antecipações e a especulação jogam um papel importante na criação de dinheiro e, consequentemente, no dinamismo das economias.

24O progresso econômico traduz-se através das economias de escala (graças à mobilização de formas concentradas de energia e ao uso de máquinas potentes e eficientes) e das economias externas (graças a um acesso mais barato a informação técnica ou as notícias de mercado).

25A lição essencial da geografia econômica inspirada pela economia espacial seria a ênfase sobre o papel da distância e dos custos de transportes e de comunicação nas distribuições geográficas.

26A fraqueza da geografia econômica dos anos cinquenta e sessenta resultava das suas fundações teóricas: suas bases empíricas eram frágeis. O comportamento dos agentes era sempre racional? A hipótese é que cada um tem a capacidade de conhecer perfeitamente, e sem custo, todos os dados relativos a uma situação. Já no fim dos anos sessenta pesquisadores exploram outros tipos de comportamentos — o dos satisficers por exemplo, isto é, dos agentes que não ensaiam maximizar os seus proveitos, rendas ou utilidades, mas escolhem um nível onde atinjam suficiente satisfação.

3- Geografia econômica e economia política

27Quando a economia se estruturou, no século XVIII e no começo do século XIX, seu alvo era um pouco diferente da disciplina de hoje, tal como seu nome apontava: falávamos de economia política, e não de teoria ou análise econômica. O problema foi estabelecer como as riquezas foram divididas entre os diferentes grupos econômicos: proprietários fundiários (seja nas zonas de produção agrícola ou nas zonas urbanas), proprietários dos meios de produção (os capitalistas) e assalariados. O desenvolvimento econômico tinha dois resultados maiores: (i) a remuneração dos operários estava limitada pela competição entre eles, e foi fixada no nível da sobrevivência da reprodução da mão-de-obra; (ii) a parte da renda total que foi atribuída aos proprietários fundiários crescia, ao mesmo tempo em que os níveis de lucro diminuíam.

28A perspectiva da economia política se desenvolveu mais cedo que a análise econômica, mas ela não teve uma forte influência sobre a geografia econômica até os anos 1950 ou 1960. Foi através da sua formulação marxista que ela teve um papel importante na ocasião.

4- Geografia econômica e inspiração antropológica

29A antropologia econômica oferecia outro modelo para construir uma geografia econômica. Para os antropólogos, o domínio econômico não se confunde com o das decisões racionais no sentido da maximização dos lucros, das rendas ou das utilidades. Para eles, a antropologia econômica estuda a produção de todos os bens materiais e de todos os serviços indispensáveis à vida dos grupos humanos. A procura social tem suas raízes na biologia (alimentação) e na esfera simbólica (consumo ostentoso de riquezas). A circulação mercantil não aparece central nessa perspectiva: as situações de autarquia têm um papel tão importante quanto o da produção comercial. A ênfase não se situa no mercado. Ela também repousa sobre outras formas de circulação, quer seja a redistribuição, quer seja o dom e o contra-dom. A inspiração vem de Marcel Mauss (1922/1923) e Karl Polanyi (1944).

30Esta leitura de economia impõe-se no estudo das sociedades tradicionais, onde sempre existe uma parte importante de autarquia e uma parte importante do consumo é simbólico.

31Este tipo de abordagem aparece também para as sociedades modernas: uma parte importante dos agentes não se conforma ao modelo da escolha racional da teoria econômica; a dimensão simbólica de uma parte do consumo é notória. Portanto, não se pode construir uma geografia econômica moderna sem aceitar algumas das orientações exploradas pela antropologia econômica.

32Com a virada cultural da geografia humana, nos anos noventa do século XX, a influência da antropologia econômica tornou-se mais forte na geografia econômica.

Conclusão

33A geografia econômica não é uma disciplina edificada num curto período de tempo. O seu desenvolvimento durou mais de um século e meio e combinou em proporções diversas influências originadas em vários campos. Agora, vamos ensaiar precisar o papel de David Harvey na elaboração de uma abordagem marxista em geografia econômica e seu papel na evolução geral da disciplina.

David Harvey e a construção da geografia econômica marxista

34A abordagem marxista da vida econômica inscreve-se na perspectiva da economia política. Marx conferia um papel importante aos aspectos espaciais da vida econômica nas suas primeiras publicações, mas eliminou-os completamente na preparação do Capital (Lefebvre, 1972; Claval, 1978).

35O resultado foi que não existia até o fim do século XIX uma geografia econômica marxista. Ela desenvolveu-se somente no começo do século XX e tratava essencialmente do problema do imperialismo, como se pode constatar nos trabalhos de Rosa Luxemburgo e Lênin. Esta primeira geografia econômica marxista apoiava-se mais sobre a teoria da acumulação primitiva que sobre as lições do Capital.

36Nos anos cinquenta e sessenta, uma geografia econômica marxista se constitui, mas ela permanecia essencialmente uma análise da exploração das economias do terceiro mundo, isto é, uma geografia da permanência das formas da acumulação primitiva num estado já muito avançado do capitalismo. A ideia fundamental deste tipo de explicação foi que a propagação do progresso nos países subdesenvolvidos fora proibida pelas forças capitalistas. Quando o crescimento econômico de uma parte da Ásia oriental e sul-oriental acelerou-se nos anos setenta, a fraqueza deste tipo de explicação pareceu cada vez mais evidente.

37Um capítulo original da geografia econômica marxista dos anos sessenta e setenta foi a análise da formação dos guetos e zonas de segregação nas áreas urbanas — aspecto mais próximo das formas originais da economia política. Num centro urbano, os mecanismos que dominam a repartição espacial das classes sociais dependem das suas rendas e do papel da renda fundiária. Foi neste domínio que o marxismo contribuiu pela primeira vez a esclarecer de maneira original a distribuição espacial dos fatos econômicos e sociais. Em Social Justice and the City, David Harvey enfatizou estes aspectos da realidade contemporânea, combinando uma análise em termos econômicos com a denúncia de desigualdades econômicas e da exploração de camadas menos favorecidas — um verdadeiro trabalho de ‘economia política’.

A natureza da teoria marxista

38A razão fundamental da fraqueza da geografia econômica de inspiração marxista resultou da natureza da própria obra de Marx. Nas suas primeiras obras, o espaço tinha um papel importante: a oposição cidade/campo, assim como a exploração dos países tropicais pela Europa na construção da economia capitalista, falavam da diferenciação espacial do mundo e de sua influência sobre o curso do desenvolvimento econômico. Este tipo de consideração permanecia importante nos Grundrisse.

39O espaço desapareceu completamente do primeiro livro do Capital, onde Marx expunha o coração da sua versão da teoria econômica. Tal ponto fora sublinhado por Henri Lefebvre no seu livro Le Marxisme et la ville (1972). Retomei o problema em meu artigo de 1978, "Le marxisme et l’espace". Por que e como Marx decidiu eliminar o espaço da apresentação mais sistemática de seu pensamento?

40A razão parece clara: para desenvolver-se no espaço, uma mudança precisa de um certo prazo de tempo. Uma teoria que leva em conta o papel da distância e da diferenciação natural e social da terra não pode ser revolucionária porque as mudanças que ela explica não acontecem no mesmo momento em vários lugares. O conteúdo de uma teoria espacial sempre parece mais reformista que revolucionário.

41O método de Marx?

"O método de Marx, que consiste em descer da aparência superficial dos eventos particulares em direção às abstrações reinantes sobre a superfície […], implica considerar cada grupo de eventos particulares como internalização de forças subjacentes fundamentais que os guiam. O alvo do trabalho de pesquisa é identificar tais forças através da análise crítica e da inspeção detalhada de cada exemplo individual" (Harvey, 2010b, p. 209-210).

42O meio de eliminar o espaço? A análise do processo da exploração do trabalho pelo capital. A diferença entre o que o trabalhador recebe e o que ele produz enquanto mercadoria, a mais-valia, gera o lucro. Este mecanismo não é consciente: a economia clássica ignorou-o porque ela só tratava das realidades empíricas. Ela não tinha a capacidade analisar os mecanismos implícitos.

43O teórico marxista tem uma posição diferente. Ele tem a capacidade de entender os processos sociais no momento em que a evolução econômica faz com que eles surjam; em consequência, ele pode ver o que, para outros, permanece oculto. É graças ao fato de que a consciência (concreto do pensamento) das novas formas do real (concreto real) se desenvolve muito cedo na mente do bom teórico que ele pode entender as forças que transformam o mundo. Na medida em que a exploração dos trabalhadores resulta da compra de seu trabalho, é fácil eliminá-la por intermédio da supressão das relações capitalistas. Basta uma ação revolucionária.

44Eis o que opõe a análise econômica à teoria marxista: enquanto a primeira permanece fiel aos dados empíricos, a segunda invoca um processo sem base empírica (a presença do concreto de pensamento na mente de algumas pessoas) para validar suas afirmações.

45A força da teoria marxista vem do fato que as desigualdades não resultam do exercício de um poder político: a exploração capitalista não exprime uma colusão entre poder político e vida econômica. Ela só resulta de um mecanismo econômico — o mecanismo da reprodução ampliada. A ordem econômica do capitalismo é, per se, fundamentalmente injusta. Daí a necessidade de subvertê-la via revolução: destruir o sistema político existente para instituir uma nova ordem econômica.

A reintrodução da dimensão espacial na teoria marxista por David Harvey

46Harvey entende perfeitamente a natureza da teoria marxista. Na sua perspectiva, não se pode dar uma dimensão espacial à análise da exploração do trabalho sem renunciar à dimensão revolucionária da teoria — o que ele não deseja.

47A solução de Harvey no livro The Limits of Capital respeita essa exigência. Ele não modifica a parte central da análise de Marx. Para Harvey, o espaço não tem nenhum papel na exploração do trabalho e na formação do capital no processo da reprodução ampliada. O que introduz o espaço na teoria marxista é a própria dinâmica do capitalismo. A acumulação do capital cria crises de superacumulação. Para resolvê-las, os capitalistas recorrem à produtividade do capital no futuro (através da construção de infraestruturas ou equipamentos) ou no espaço (através do equipamento de outros países). Mas essa solução cria rigidez:

"Embora o capital fixo investido no solo facilite a mobilidade espacial de outras formas de capital e de trabalho, ele exige que essas interações no espaço respeitem a estrutura geográfica fixa desses investimentos, a fim de que seu próprio valor possa ser realizado. Por consequência, o capital fixo incrustrado no solo – usinas, ofícios, habitações e escolas, assim como o capital imobilizado nas infraestruturas de transporte e comunicação – age como um potente obstáculo às transformações geográficas e à realização das atividades capitalistas" (Harvey, 2010a, p. 127-128).

48Nas zonas onde os lucros são mais altos, os capitalistas criam fábricas e edificam casas para os trabalhadores; os municípios e o Estado criam escolas para as crianças. A população cresce; o Estado equipa a região com ferrovias ou rodovias. A vida operária organiza-se. Sindicatos aparecem em defesa dos empregados. O capitalismo conduz à criação de equipamentos em certas áreas. Como resultado, o espaço torna-se mais rígido. Os preços da terra tornam-se mais altos.

49Para os capitalistas, essa evolução significa salários mais altos, lutas sociais mais frequentes com os sindicatos. Os custos da terra evoluem de acordo com o nível geral de vida. Para manter os seus lucros, os capitalistas só têm uma solução: investir em outros lugares onde o preço do solo é mais baixo, os operários permanecem sem organização sindical e a proteção social é menos forte. Daí a tendência de migração das zonas industriais: as regiões atraentes para o capital num certo momento tornam-se zonas repulsivas uma geração ou duas mais tarde.

50Desta maneira, David Harvey introduz a noção de arranjo espacial [spatial fix]:

"O termo arranjo (fix) tem um duplo sentido em minha proposta. Uma certa parte do capital total é literalmente incrustrada no e sobre o solo, sob uma forma física, por um período de tempo relativamente longo [...]. Em outra parte, o planejamento espaço-temporal é uma metáfora para um tipo particular de solução às crises capitalistas, que joga sobre o reporto no tempo e a expansão geográfica" (Harvey, 2010a, p. 142).

51A transformação do espaço através da criação de arranjos espaciais tem efeitos contraditórios negativos e positivos. Negativos por causa da rigidez que eles introduzem no espaço. Positivos porque o processo de acumulação do capital cria estruturas regionais que, muitas vezes, aparecem para ele como atraentes:

"Os investimentos no ambiente construído definem espaços regionais de circulação do capital. No interior desses espaços, a produção, a distribuição e o consumo, a oferta e a procura (particularmente da força de trabalho), a luta das classes, a cultura e os estilos de vida articulam-se uns aos outros num sistema aberto, porém dotado de uma certa ‘coerência estruturada’. [...] Uma consciência regional e identidades, e mesmo lealdades afetivas, podem se edificar no seio dessa região e, quando ela se acha tomada pela órbita do aparelho governamental e do poder de Estado, o espaço regional pode então transformar-se num espaço definido de consumo e produção coletiva, mas também de ação política"(Harvey, 2010b, p. 225).

52No processo de reprodução ampliada a acumulação resulta de um processo sem dimensão espacial específica: a exploração do trabalho. Porém, como o capital aparece enquanto gerador de arranjos espaciais, a geografia do mundo capitalista sempre muda: a diferenciação do espaço é a consequência do desenvolvimento do capital. "Os processos moleculares [da acumulação do capital] concorrem à produção de ‘regionalidades’" (Harvey, 2010a, p.128).

53Desta maneira, Harvey promove um verdadeiro tour de force: desenvolver uma teoria marxista que preserve sua força revolucionária e, ao mesmo tempo, inserir nela a noção de spatial fix, isto é, um equivalente às economias externas de escalas da economia liberal, responsáveis da estruturação regional do espaço — aspecto semelhante à geografia econômica liberal:

"Em uma certa medida, essa linha de argumentação é paralela à teoria clássica da localização [...]. A diferença principal reside no fato de que estes trabalhos esforçavam-se sobretudo em identificar um equilíbrio espacial, enquanto os processos de acumulação do capital são percebidos como perpetuamente em expansão e, portanto, negam de modo permanente a tendência ao equilíbrio" (Harvey, 2010a, p. 121).

A geografia econômica da cidade segundo David Harvey

54No quadro de seu ensaio de reintrodução do espaço na teoria marxista, Harvey dedicou atenção particular à cidade. De Social Justice and the City a Consciousness and the Urban Experience (1985a) e The Urbanization of Capital (1985b), a continuidade aparece de maneira evidente. A cidade é a cena onde o conflito entre os proprietários fundiários, os empresários capitalistas e os operários é mais clara.

55The Urbanization of Capital estuda a transformação das cidades e seu papel na imobilização do capital nos períodos de superacumulação. Harvey sublinha o papel do Estado neste tipo de política como consequência do keynesianismo depois da Segunda Guerra Mundial.

56Na época de Haussmann, a dinâmica da cidade caracterizou-se pela conquista dos espaços centrais da cidade pela nova burguesia e a expulsão dos operários em direção à periferia. Consciousness and the Urban Experience analisa o processo na perspectiva das representações e das ideologias. Em consequência da urbanização do capital, a classe operária parisiense toma consciência de sua exploração e desenvolve uma ação revolucionária, a Comuna de Paris. Após sua repressão, a burguesia parisiense lança uma operação de reconquista ideológica das classes populares: a construção da basílica de Sacré-Cœur foi o símbolo desta operação.

57Assim, Harvey mostra a ligação estreita entre a dinâmica econômica do capitalismo, a urbanização, as lutas ideológicas e a necessária construção de uma consciência revolucionária.

A teoria de Harvey e a evolução contemporânea do mundo

58A teoria marxista revista por David Harvey teve rapidamente de responder a desafios ligados à evolução da economia e à sua interpretação. Sua réplica fortaleceu-se dos anos 1980 aos anos 2000.

A teoria de Harvey face ao pós-modernismo e a compressão espaço-tempo

59O funcionamento da economia muda rapidamente nos anos setenta e oitenta: a mundialização progride, as grandes empresas capitalistas dos países industrializados (Europa Ocidental, Estados Unidos e Japão) encontram a concorrência dos novos países produtores da Ásia de Leste ou do Sudeste. Elas reagem via internacionalização de suas operações e por intermédio do uso cada vez mais sistemático da subcontratação. Foi assim que o capitalismo se modernizou e prossegue em superar suas contradições.

60Ao mesmo tempo, as representações sociais mudam nos países industrializados. Novos movimentos sociais desenvolvem-se. Povos lutam por um melhor quadro de vida, para reduzir poluições, para preservar o patrimônio. O ideal da revolução social parece menos atraente para as classes populares.

61A teoria marxista não oferecia uma interpretação fácil dessa evolução. Os geógrafos econômicos de esquerda entendem bem que o capitalismo muda. O tempo da grande empresa que produzia bens estandardizados já pertence ao passado: o capitalismo fordista é substituído por um capitalismo flexível, o que significa que o papel dos custos da informação e da economia do conhecimento torna-se mais importante.

62A maioria dos geógrafos de esquerda com um interesse em economia renuncia às interpretações marxistas clássicas. As pesquisas sobre os distritos industriais têm um interesse central para eles. A escola francesa da Regulação lhes oferece uma solução elegante. Ela propunha combinar dois níveis de teoria: um nível médio, baseado nos ensinamentos da análise da economia da informação e comunicação, e um macronível, onde os ensinamentos marxistas permanecem válidos.

63No campo das representações e das ideologias, a evolução parece semelhante: a maioria dos teóricos de esquerda ensaia superar o marxismo. Henri Lefebvre enfatiza o papel dos novos movimentos sociais. François Lyotard mostrou que a critica pós-moderna, iniciada na esfera da arquitetura, tinha um sentido muito mais amplo: ela refletiu a crise do pensamento ocidental, das grandes narrativas e, em particular, do marxismo. Durante dois séculos, o pensamento ocidental tinha privilegiado o tempo; hoje, ele torna-se mais atento aos problemas espaciais, como o mostra Fredric Jameson (1982).

64Destarte, a evolução da economia contemporânea fragiliza a ortodoxia marxista. A versão desta desenvolvida por Harvey, nela incluída a novidade da dimensão espacial, pode explicar a cena econômica e social mundial? Tal é o desafio para ele. The Condition of Postmodernity é sua resposta.

65Harvey incorpora na sua interpretação do marxismo as propostas da Escola da Regulação: ao capitalismo fordista da primeira metade do século XX ele opõe o capitalismo flexível de hoje, porém recusa a distinção entre uma meta-teoria marxista e meso-teorias baseadas na análise econômica. Sua interpretação da compressão espaço-tempo (que advém de Marx) permite explicar as mudanças do capitalismo sem conferir demasiada importância aos mecanismos descritos pela economia clássica.

66Harvey não nega a evolução das representações. Os movimentos sociais têm alvos diferentes daqueles do passado; eles se tornam mais reformistas que revolucionários. O pensamento atual parece mais atento às questões da atual organização do espaço do que aos problemas do futuro. Todos esses fatos podem ser interpretados em termos de ideologia: o capitalismo flexível cria uma nova família de representações cuja função é clara: distrair as pessoas dos problemas reais do mundo atual; organizar quadros de vida lindos e harmoniosos para fazê-los sonhar.

67Nessa perspectiva, o problema do intelectual de esquerda é simples: denunciar as novas formas da ideologia para reconstruir uma consciência revolucionária e impor mudanças profundas no sistema social e econômico contemporâneo.

A teoria de Harvey face à diversidade

68Mais uma vez, Harvey propõe uma interpretação do marxismo que explica a dinâmica da economia e a evolução das representações e das ideologias do capitalismo — de um capitalismo tornado flexível. As reações dos intelectuais da esquerda à publicação de Condição pós-moderna constituem uma surpresa para seu autor. A maioria foi muita crítica. O que Harvey tinha ignorado era a diversidade do mundo contemporâneo. A grande narrativa marxista que propõe não é atraente para feministas e defensores de minorias étnicas, sexuais e religiosas. Para Harvey, o mundo dos explorados e dos excluídos tem de reconstruir sua unidade segundo a temática da exploração capitalista.

69As publicações recentes de Harvey oferecem respostas a tais críticas numa dupla perspectiva: econômica, para explicar as formas mais recentes da dinâmica capitalista; simbólica, para explicar a evolução das representações e das ideologias.

70Uma parte da leitura que ele faz do capitalismo no mundo contemporâneo concerne à sua dimensão simbólica. A força deste capitalismo vem do fato de que ele explora categorias muitas diferenciadas. Harvey examina essa diversidade e mostra a variedade dos interesses de seus componentes e os elementos que compartilham. Todos desenvolvem críticas contra a sociedade contemporânea, todas aspiram outras formas de organização social.

71Para erigir uma resposta revolucionária a essa forma de dominação, é importante considerar a diversidade real do mundo atual, suas numerosas minorias e suas mais distintas aspirações. A construção de um movimento revolucionário unitário, sempre necessário para melhorar a condição das populações exploradas, só pode obter êxito se uma visão global da situação social é apresentada a cada grupo em uma linguagem que ele possa entender.

O capitalismo por espoliação

72David Harvey imagina a parte essencial da resposta às críticas da esquerda pós-modernista nos anos 2000. É a teoria do capitalismo por espoliação, apresentada em The New Imperialism (2003) e sintetizada no artigo "O novo imperialismo: a acumulação por espoliação" (2004).

73Marx distinguia dois tipos de acumulação:

"A emergência de uma classe capitalista não dependia inicialmente da capacidade desta classe de extrair excedente. Ela repousa sobre sua capacidade em apropriar-se do mesmo, de tratá-lo como sua propriedade privada e integrá-los na circulação a fim de aumentá-los [acumulação primitiva]. Ao passo que o comércio, o banco e a usura forneciam oportunidades de lucro, o capitalismo como sistema social tornava-se dependente da formação de um proletariado e do emprego de trabalho assalariado. A realização do excedente podia ser assegurada internamente, no próprio âmago do sistema, sobre uma base contínua [acumulação ampliada]" (Harvey, 2010b, p. 213).

74David Harvey deve a Hannah Arendt a seguinte leitura:

"[Arendt] deu-se conta pela primeira vez que o pecado original da pilhagem pura e simples que, séculos antes, tinha permitido ‘a acumulação original do capital’ (Marx) e preparado a acumulação futura, teve finalmente que se repetir se não quisesse ver morrer subitamente o motor da acumulação.

"Segundo Arendt, os processos que Marx descrevia […] como acumulação ‘primitiva’ ou ‘original’, representam uma força importante e permanente no coração da geografia histórica do capital à época do imperialismo. Como no caso da oferta de trabalho, o capital sempre necessita de um fundo de ativos fora dele mesmo se quiser fazer frente e superar as pressões da superacumulação" (Harvey, 2010a, p. 170-171).

75O que Arendt ensina a David Harvey é que "No capitalismo, existe uma contradição central entre lógicas territoriais e lógicas capitalistas do poder" (Harvey, 2010b, p. 229). No mundo atual, o capitalismo não tem mais a possibilidade de criar lucros somente a partir da produção industrial, como no tempo do fordismo. Ele tem de explorar as diferenças: por isso ele envolve mulheres, imigrantes marginalizados e o sub-proletariado das favelas para sobreviver à crise. Uma nova forma de capitalismo se desenvolve: o capitalismo por espoliação.

76Tal interpretação é muito diferente da oferecida pelo O Capital. A exploração cessa de aparecer como resultado de processos puramente econômicos. Ela tem uma dimensão política fundamental: é graças ao fato de que os capitalistas têm um poder de dominação sobre as mulheres, os marginais do mundo industrializado ou sobre as classes pobres do terceiro mundo, que eles mantêm a possibilidade de obter lucros.

77As últimas versões da interpretação do marxismo por David Harvey tornam-se menos ortodoxas que as antecedentes. A teoria do capitalismo de espoliação aparece como um retorno à acumulação primitiva, isto é, a uma situação onde a economia não é autônoma ao sistema político.

Conclusão: a teoria de Harvey, o imperativo revolucionário e a geografia econômica moderna

78O sucesso atual da teoria de Harvey deve-se à crise financeira do capitalismo: o sistema de desregulação teorizado pela economia liberal levou em 2008 à pior crise desde 1929. A reação dos Estados foi assaz rápida e forte para evitar uma catástrofe geral, mas a situação permanece difícil. O que dizia David Harvey há anos era que o capitalismo envolvia, mas que sua natureza não mudava e era passível a contradições e a crises.

79Sua teoria é a única que propõe uma interpretação global da crise – mesmo se ela não explica realmente o jogo especulativo que produziu a ruína do sistema bancário.

Numa perspectiva mais longa: força e fraqueza da perspectiva revolucionária

80A leitura da geografia econômica e social do mundo que David Harvey vem construindo está ligada à sua perspectiva geral: optar pelos explorados e preparar a mudança revolucionária que lhes dará a situação que eles desejam.

81O imperativo revolucionário é central em seu projeto: uma vez que oferece a perspectiva de uma renovação total da cena econômica e social, a teoria da exploração capitalista do trabalho por intermédio da mais-valia aparece como peça central de toda sua explicação.

82O sucesso atual da teoria de Harvey deve mais à perspectiva revolucionária do que à sua própria força e coerência. Todavia, a teoria da acumulação por espoliação não é mais uma teoria puramente econômica: ele confere ao jogo do poder um papel central. Desta maneira, a geografia econômica de David Harvey incorpora processos não-econômicos — caraterística de toda a geografia economia contemporânea. Porém, geralmente, os geógrafos da economia parecem mais atentos aos processos culturais que aos processos políticos.

A contribuição da teoria de Harvey à construção da geografia econômica moderna

83Mesmo se o coração da teoria de Harvey – a teoria marxista da extração da mais-valia pelos capitalistas – apresenta as mesmas fraquezas que o seu modelo, ela tem contribuído muito para o fortalecimento de uma geografia econômica moderna. Sintetizo três de seus aspectos:

  1. Sublinha a permanência, através da evolução das formas do capitalismo, do problema da exploração de uma parte da população pelos capitalistas: o problema fundamental de toda a economia política, que é o problema da justiça social, subsiste. Os geógrafos têm de esclarecer as diversas formas que ele assumiu durante uma evolução rápida, e propor soluções para resolvê-lo;

  2. papel dos mecanismos capitalistas na evolução das cidades: ele contribuiu muito, desde o começo dos anos 1970, para a construção de uma geografia econômica coerente das cidades.

  3. Desde os anos oitenta, Harvey mostrou a fecundidade da análise paralela dos processos econômicos e das representações e ideologias. Sua interpretação das ideologias da vida urbana é de grande originalidade.


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